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PERDA E DESPERDÍCIO DE ALIMENTOS: INICIATIVAS MULTISTAKEHOLDER NO BRASIL


É longo o caminho percorrido por um alimento na cadeia de suprimentos para alcançar a mesa do consumidor. Nesse trajeto, o alimento é submetido a sistemas de padronização, legislação e inspeções. As estimativas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) sugerem que, ao longo dessa jornada, 1/3 de todo o alimento produzido é desperdiçado. Entretanto, ainda é preciso avançar no entendimento de onde e como isso acontece.


Especialmente no setor agroalimentar, uma tendência de imposição dos padrões privados sobre os padrões públicos pode ser observada, principalmente nos aspectos da segurança alimentar, qualidade do alimento e sustentabilidade da cadeia. Nota-se, durante as últimas duas décadas, o surgimento e crescimento da governança privada envolvendo também stakeholders nas decisões e estratégias das grandes empresas. Ela pode assumir diferentes formas, como as práticas que regem as relações da cadeia com o meio ambiente; códigos de conduta definidos por organizações não-governamentais (ONGs); ou selos e certificações que apoiam as demandas dos consumidores por determinadas categorias de produtos, como os alimentos frescos orgânicos.


Em mercados urbanos, especialmente em países emergentes, atacadistas e/ou distribuidores recebem destaque por serem responsáveis por negociar grandes volumes de alimentos (FAO, 2015). Armazenamento e transporte são os principais pontos críticos que levam à perda de alimentos neste agente. Além disso, a definição de padrões imposta por outro agente da cadeia – as redes de varejo – também contribui: um dos efeitos desta regulação privada é o desperdício de alimentos, onde produtos considerados “imperfeitos” acabam sendo desperdiçados.


O consumidor, por sua vez, também possui papel importante no que diz respeito ao volume de alimentos desperdiçados. Contribui no momento do consumo, ao desperdiçar comida. Ademais, sua interação com o produto contribui para o desperdício ao utilizar-se da percepção visual no momento da compra. Informações veiculadas na embalagem também interferem, como é o caso da data de validade ou vencimento. Tal expressão e informação – de caráter obrigatório segundo a legislação brasileira vigente – são utilizados pelos fabricantes para indicar o pico de qualidade do produto, não sendo portanto um indicador direcionado exclusivamente à segurança do alimento.


Para minimizar a perda e o desperdício de alimentos, indo além da segurança do alimento em si, bem como maximizar os benefícios para a sociedade, é preciso o aprofundamento do sistema de governança e gestão da cadeia de valor agroalimentar, especialmente no que tange ao estabelecimento de padrões público e privados na relação entre o agente atacadista/distribuidor, as redes de varejo e, consequentemente, o consumidor. Isso vem ao encontro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, propostos pela ONU. O objetivo número 12 é assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis. Mais especificamente, a meta 12.3 é “até 2030, reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, além de reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”. Como benefícios sociais da mitigação da perda e desperdício de alimentos, pode-se destacar o aumento da renda de pequenos produtores (agricultores), diminuição da fome e consequente avanço da segurança alimentar da sociedade.


Um estudo que avança no entendimento desta temática no Brasil foi recentemente publicado em uma importante revista acadêmica. Nele, Matzembacher, Vieira e De Barcellos (2021) investigam os papéis adotados por diferentes stakeholders engajados em iniciativas voluntárias para a redução da perda e desperdício de alimentos.

Os resultados mostram que atividades e ações em iniciativas multistakeholder mudam de acordo com seu posicionamento na cadeia institucional ou de valor. Entre eles, podemos citar: políticas e regulações, aumento da eficiência de materiais; desenvolvimento de mercado emergente; práticas de gestão; sensibilização, informação e capacitação; redistribuição de comida; pesquisas e novos conhecimentos. São dois os principais stakeholders: (1) o governo federal – que modera as deliberações políticas; e (2) o varejo, que influencia a mudança de comportamento dos demais atores.


Em tempos de pandemia e aumento da insegurança alimentar no país (como mostram os dados divulgados em www.olheparaafome.com.br, a redistribuição de alimentos aparece como questão-chave no combate à fome. As autoras ressaltam que os bancos de alimentos têm papel importante nesse sentido, além de iniciativas digitais desenvolvidas por diferentes ONGs.


Ainda, os resultados de Matzembacher et al. (2021) indicam que produtores percebem a perda e desperdício de alimentos como parte intrínseca da produção agrícola. Diversas iniciativas trabalham essa questão, onde incentivar o (ainda) tímido mercado para produtos comumente “rejeitados” ou “imperfeitos” aparece como alternativa geradora de ganhos para todos os agentes da cadeia, além da sustentabilidade intrínseca.


Um ambiente institucional de instabilidade política, dificuldade logística na cadeia de frio devido às longas distâncias, infraestrutura precária (estradas/ferrovias), assimetria de poder e questões culturais são apenas alguns dos fatores que devem ser considerados ao se analisar soluções e iniciativas para diminuição das perdas e desperdício de alimentos em uma economia emergente como o Brasil, afirmam as autoras. Para elas, para alcançar a meta 12.3 proposta pela ONU, é relevante trabalhar em parceria com todas as práticas já existentes, além de encorajar atores externos para participar e/ou liderar tais iniciativas. O envolvimento do setor privado é chave para que ocorram mudanças relevantes na cadeia de suprimentos brasileira.


Enfim, a legitimidade das iniciativas multistakeholder baseia-se na representação e participação de stakeholders em um processo inclusivo. E entender até que ponto elas podem ser consideradas uma forma de governança diferente das demais – principalmente a governança privada – pode ser o início de novos entendimentos sobre como as cadeias globais, um fenômeno em transformação, estão institucionalizando e legitimando práticas.



Referências

Matzembacher, Daniele E.; Vieira, Luciana M.; De Barcellos, Marcia D. An analysis of multi-stakeholder initiatives to reduce food loss and waste in an emerging country – Brazil. Industrial Marketing Management, v. 93, p. 591-604, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.indmarman.2020.08.016


ONU. Objetivos de desenvolvimento sustentável 12. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/12


FAO, 2015. Boosting food security in cities through better markets, reduced food waste. Disponível em: www.fao.org/news/story/en/item/288367/icode/utm_source=facebook&utm_medium=social+media&utm_campaign=fao+facebook. Acesso em: 07 jun. 2015.


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Sobre a autora:

Alexia Hoppe é Engenheira de Alimentos e Doutora em Administração. É pesquisadora independente e atua como colaboradora em projetos relacionados à indústria de alimentos no Brasil e agronegócios, sendo suas principais áreas de pesquisa: cadeia global de valor, marketing, inovação e certificações, desperdício de alimentos e sustentabilidade.

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