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Foto do escritorMónica Guerra Rocha

O mimo do morango


Eu ficava sempre acordada até o último respiro de sono me combater só para esperar que ele chegasse.

O meu pai sempre saiu de casa antes que eu acordasse, chegava quase sempre depois de eu dormir. Naqueles dias que eu conseguia esperá-lo, reconhecia o som do carro assim que entrava no prédio. Fazia mentalmente o caminho dele: para o carro, abre o portão, estaciona, desliga o motor, fecha o portão, a porta do elevador, 2 andares, fecha a porta, vira à esquerda, chave na fechadura e o meu coração batia muito mais forte.

Junto com ele e os beijos coreografados que dávamos, quase todos os dias o meu pai trazia no ombro direito uma caixa de papelão. Ficava ansiosa que a caixa fosse colocada na mesa para eu poder ver o que tinha, pendurada na pontinha do pé.

Meu pai toda a vida teve uma mercearia. Aquela mercearia do bairro, que a vizinhança frequenta, que recebe correspondência de alguns, vende pão, dá conselho familiar a outros, vende azeite, é ponto de encontro de conversas, vende vinho, frutas, verduras, sabonete, caderno escolar, jujuba, amendoim. Eu sempre achei a mercearia do meu pai o lugar mais importante daquele bairro, quase da cidade inteira, talvez do mundo. Tinha tudo, tudo, tudo.

No fim do dia ele vinha para casa com aquela caixa no ombro. Dentro, os itens da lista que a minha mãe ditava para ele no começo do dia ou pelo telefone, no meio da tarde. Recheava o armário, alimentava a minha imaginação.

“Papá, tens morangos?”

Essa foi uma das perguntas que mais devo ter feito durante a infância.

Filha única, mimada, leonina, achava que só por esquecim

ento o meu pai não me traria a minha fruta favorita – morangos. Eu, e mais uma torcida do flamengo inteira, gostariamos que morango nascesse na janela de casa, ou melhor, diretamente no prato, de preferência já lavado e picado. Vinha aquela caixa enorme e uma grande parte da minha aceleração cardíaca era na expectativa do morango. De ser mimada com morangos.

“Não tem filha, morangos só Abril, antes das cerejas, assim que começar a primavera.”

Ele sabe o calendário todo. Encaixa uma fruta na outra como se fosse um trenzinho colorido. Eu visualizava todas elas de mãos dadas – a laranja e tangerina do inverno, os morangos na primavera, logo de mãos dadas com as cerejas, e a alegria do verão: melancias, melões, ameixas, já de mãos dadas com os figos, maçãs, caqui, kiwi.

No verão as frutas vêm carregadas de água para que nosso corpo se hidrate. A laranja, tangerina, kiwi, vêm no inverno, porque é quando mais precisamos da vitamina C para combater vírus e resfriados. Na primavera, as mais sensíveis se beneficiam da temperatura amena e nos devolvem pratos cheios de cor primaveril. É quando os morangos dão um alô para voltar no ano seguinte.

Mas eu, mimada, queria morangos, todo o ano, o ano todo.

As 4 estações na mesa

Dezenas de variedades de verduras, frutas, enlatados, importados, processados, ultraprocessados. A tecnologia mudou nossas vidas, nossas relações e isso não é novidade. O limite do que podemos fazer está sempre nos recursos que temos. Se o solo não der morango, não tem morango. Se chover fora de época, a cereja está ameaçada. Se fizer muito calor no outono, os figos podem amadurecer rápido demais. Mas hoje o solo está na gôndola do supermercado e colher fruta do pé fica na distância de um clique.

Podemos ter no nosso prato um mapa mundi inteiro, que contabilizado percorre mais milhas do que muitos de nós durante toda a vida. Abrimos qualquer receita de aplicativo, fazemos a lista, compramos, comemos. Melancia no inverno, aspargos todo o ano, morangos no outono, figos quando quer. Identificamos alguma mudança nos preços que alertam que, provavelmente, tem algum custo extra naquele produto. Queremos manga palmer todo o tempo, mamão todos os cafés da manhã. Achamos a quinoa importada muito cara, nos revoltamos porque as maçãs que adoramos no nosso suco verde têm tanto agrotóxico que não podemos comer as suas cascas. Mimados, queremos a natureza ao dispor, a serviço, todos os dias, em todas as suas formas. E de tanto mimo que trazemos e alimentamos, nem vemos que mais mimo do que ela nos dá é impossível pedir.

Os alimentos que mais precisamos, no momento que mais precisamos, com todo o sabor e energia, em abundância e serenidade. A natureza é mais sábia que qualquer aplicativo com todas as receitas do momento. As proporções são perfeitas e o esforço mínimo é colocado a nosso serviço para o benefício máximo. Somos muito mimados por ela, natureza, mas sem querermos parar para pensar sobre isso, pedimos dela o que ela não nos pode dar, e reclamamos se não vem do jeito que queremos.

Então enchemos as plantações de fertilizantes químicos, de venenos que matem as pragas que não existem (existe é modos de produção desequilibrados), que potencializem o crescimento que não é suposto acontecer, que acelerem os processos, que distorçam essa combinação perfeita – solo, água, sol, ar. Mais do que mimo, queremos controle. Como se o mundo pudesse, então, ser um aplicativo online que nunca acusa produto indisponível.

Acabo de chegar do supermercado. Quase sempre faço as minhas compras em feiras ou diretamente do pequeno produtor, mas depois de dias viajando, era a opção de emergência. É fim de verão, hemisfério sul, país tropical. Com letras grandes anunciam a promoção de umas bandejas de isopor, iluminadas: Morangos, aproveite! Decidi ser mimada.

Trouxe 2 abacates para casa. Uma dúzia de bananas maduras. Goiaba e manga. E junto na sacola, um carinho da natureza, ela, a sábia, que agora é quem monta o cardápio aqui em casa. Como diz o chef Dan Barber, se o objetivo é ter o melhor sabor, precisamos ter a melhor ecologia, compreender ciclos e dialogar com o que nos oferecem.

E depois das compras telefonei ao meu pai. E hoje falamos sobre morangos.

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