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Conferência sobre a Água da ONU: a crise hídrica no centro do debate internacional


Após quase cinquenta anos, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU - realizou a II Conferência sobre a Água, que aconteceu em Nova Iorque, nos Estados Unidos, entre os dias 22 e 24 de março deste ano, coincidindo com o Dia Mundial da Água. A primeira conferência das Nações Unidas sobre a Água aconteceu em 1977, na cidade de Mar del Plata, Argentina. Desde então, aprofundou-se drasticamente a crise hídrica global e seus impactos negativos na saúde humana, na segurança e soberania alimentar, no quadro geopolítico de conflitos e guerras motivados pelo controle do acesso à água, entre outros.


No relatório apresentado pela ONU às vésperas da inauguração da conferência, como resultado de um estudo realizado em 2020, verifica-se que há uma interconexão entre a crise climática, a crise alimentar e a crise hídrica, que está ligada à escassez e concentração no acesso à água. É inegável o papel das mudanças climáticas no agravamento da insegurança hídrica, refletida nos impactos negativos no ciclo da água, o que vem causando secas cada vez mais prolongadas e enchentes.O referido relatório aponta que ainda existem cerca de 2 bilhões de pessoas sem acesso à água potável, o que corresponde a 26% da população mundial. Os dados também revelam que 46% desta população está privada do acesso ao saneamento, mesmo que estes dois indicadores tenham sido declarados, pela ONU, como um direito humano desde o ano de 2010. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, existem quase 35 milhões de pessoas no Brasil vivendo sem o acesso à água tratada. Embora este cenário faça parte de um contexto mundial, o relatório apontou que os países do sul global, com destaque para a América do Sul, são os mais atingidos, ainda que a maioria dos mananciais de água potável e de terras agricultáveis estejam localizados neste hemisfério. Este dado demonstra que a escassez hídrica também está ligada à injustiça hídrica, ao uso predatório e insustentável das águas, e não somente às secas ou à inexistência de mananciais locais. A exclusão hídrica também afeta de forma diferenciada a vida das mulheres, crianças e jovens, a quem cabe o trabalho de caminhar vários quilômetros diariamente em busca de água para o trabalho doméstico e a produção de alimentos nos quintais produtivos. Esta situação de impacto de gênero expõe as mulheres a riscos de violência e impõe horas de trabalho exaustivo, em média oito horas diárias, que poderiam ser dedicadas a outras atividades caso fosse garantido o acesso na própria comunidade.


Impactos da escassez hídrica nos sistemas alimentares


O aumento da poluição das reservas de água doce, aliado ao avanço da desertificação e ao desaparecimento de ecossistemas provedores de fontes potáveis, são alguns dos impactos que a escassez hídrica provoca na produção de alimentos e na segurança alimentar. Isto tende a agravar o desenho do mapa da fome levantado pela ONU, através da FAO, visto que reduz a disponibilidade da água para a agricultura camponesa e familiar, presente predominantemente nos territórios mais afetados e cuja produção é a responsável por garantir a segurança alimentar da maioria da população.


O relatório divulgado pela ONU traz uma informação preocupante: a escassez também avança fortemente sobre as populações urbanas, cujos índices podem dobrar a médio prazo, levando ao aumento dos problemas com saneamento, saúde pública e condições sanitárias para estas pessoas. O avanço da insegurança hídrica nos espaços urbanos também poderá impactar as iniciativas de agricultura urbana que vêm ganhando força nos últimos anos.


Alternativas atuais e perspectivas


As constatações atuais trazidas pelo relatório da ONU já vinham sendo sentidas e alertadas pelos países mais impactados e pela parcela da população mais afetada. Em algumas dessas regiões e localidades, foi possível ir construindo alternativas para mitigar ou driblar a crise. Algumas delas foram destaque na conferência, como é o caso das experiências de convivência com o semiárido protagonizadas pela Articulação Semiárido Brasileiro – ASA Brasil. Segundo o relatório da ONU, os programas de captação e armazenamento de água das chuvas desenvolvidos pela ASA - que foram acolhidos em política pública federal brasileira com a criação do Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais (Programa Cisternas) -, assim como as tecnologias sociais de reúso das águas cinzas utilizadas na produção de alimentos, são exemplos bem-sucedidos para garantir segurança hídrica e resiliência aos povos desta região, devendo ser replicados pelos governos como políticas públicas efetivas e de baixo custo.


Durante a 1ª edição e já no início da 2ª edição do Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares – LUPPA,foi possível conhecer algumas políticas públicas alimentares de iniciativa de cidades participantes do laboratório, em que os equipamentos públicos de sistemas alimentares receberam adaptações para um funcionamento sustentável e autônomo quanto ao uso da água. Cozinhas comunitárias e restaurantes populares receberam, em suas estruturas físicas, adaptações para a captação das águas das chuvas destinadas à limpeza dos prédios ou à produção de hortas comunitárias ao seu redor. Algumas cidades também fizeram adaptações para o reaproveitamento e reuso das águas cinzas com o mesmo objetivo. Essas iniciativas estão em sintonia com a Agenda 2030, mais especificamente com o ODS 6, que trata do acesso a água e saneamento. É uma demonstração de que, tendo em vista a interconexão das crises hídrica, climática e de insegurança alimentar apontadas pela ONU, a integração de políticas relacionadas ao clima, à segurança alimentar, ao meio ambiente, recursos hídricos e saneamento é fundamental para apontar as saídas.


Ao final da Conferência, foi aprovada uma Agenda Estratégica Mundial de Ação que garante, no plano internacional, a água como um direito humano e ecossistêmico, cujas metas e compromissos foram assumidos pelas mais de dez mil pessoas presentes no evento, entre chefes de Estado e de Governo, ministros e demais representantes governamentais, representantes de organizações da sociedade civil e ativistas. A aprovação deste documento foi um importante resultado, pois conta com mais de 700 compromissos. A participação do Governo brasileiro foi crucial para o avanço dessa agenda no país. Pela primeira vez, o Brasil reconheceu formalmente, perante a comunidade internacional, que o acesso à água é um direito humano básico a ser garantido a toda a população mundial, comprometendo-se com a agenda aprovada na conferência. Uma das expectativas em relação a este avanço no país é a tramitação da PEC 06/2021 na Câmara Federal, que, se for aprovada, irá incluir o acesso à água no rol dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.


A água, nas palavras de António Guterres, secretário-geral da ONU, deve ser conservada e gerida de forma sustentável e responsável, pois trata-se do “bem comum global mais precioso da humanidade”. O poder público e a comunidade internacional saem, desta conferência, bastante conscientes da importância do seu papel para impedir que a crise hídrica global avance para patamares ainda mais graves, e se comprometem a não permitir que a água seja tratada como uma mercadoria, e sim como uma garantia, no presente, de que haverá futuro para a humanidade.

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