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XENITIA


foto: Alex Silva (mdemulher.abril.com.br)

A experiência da ausência do próprio lar é elaborada culturalmente na Grécia sob o conceito de Xenitia. Xenitia, ou viver longe de casa, tem uma longa história na tradição oral grega (...) Para o homen, Xenitia significa a ausência do conforto físico da casa: “Em xenitia, a mulher não estará presente para cozinhar a sua comida(...) ele experienciará dificuldades e isolamento (...) é a analogia à miséria e a morte”. (...) Xenitia é descrita como uma condição de estranhamento, ausência, morte, perda de relação social ou perda da ética do cuidado que caracteriza as relações de família”.

David Sutton, 2000 - Whole Foods

2 meses de Europa. Coisa boa né?

Fiquei semanas pensando sobre isso, sonhando antecipado: como seria o grupo? como seriam as 3 semanas de retorno a uma vida de estudante? o verão europeu? o pôr do sol no Porto, o som das gaivotas no fim do dia, a Itália pela primeira vez? Bicicletas pela Holanda, gente de todo o mundo, um quarto para mim, sozinha, uma viagem inteira para mim, sozinha. Arruma mala, escolhe roupa, separa tudo em partes: o que vai na viagem, o que fica na casa, o que vai para a casa das amigas, o que é para doar, encaixota. Viajar no meio de um processo de total transição: quando voltar começa tudo de novo. Busca casa, vai na casa da amiga, pega as caixas, desencaixota, organiza, respira, recomeça.

Mas a viagem fazia o olho brilhar.

Queijo holandês, frutas vermelhas, pêssegos, ameixas, tomate italiano, azeite português, sopa do meu pai, caril da minha mãe.

Na véspera fui com a Alana no supermercado, pensei levar alguns snacks para o vôo que seria longo. Comprei tudo a granel, castanhas, ervilhas, banana seca. Óleo de côco para mil e uma funções. Quase na saida, voltei para trás, peguei o saco transparente, e dispensei a ajuda do funcionário. 500 gr de polvilho para tapioca. Entre todas as fantasias da viagem, ficava sempre uma mancha vazia no começo do dia: era ela, eu precisaria levar a tapioca comigo.

Nos dias mais tristes, nos momentos de ausência e saudade, ela estaria ali, e eu me sentiria em casa de novo. O teletransporte foi inventado no dia da primeira colheita: chama-se comida de casa.

Tudo embarcado, despedidas feitas, coração palpitante, polvilho na mala.

Ao chegar em Amsterdam a mala foi confiscada. Devolveram aberta, sem o meu saco do supermercado. “Tem algo que estamos verificando”. Expliquei que era polvilho, que bastava hidratar e virava um crepe branquinho e elástico maravilhoso. Acharam estranho, depois acharam interessante, terminaram perguntando se eu achava que teria vendendo em algum lugar por Amsterdam. Porque convenhamos, trazer 500 gr de pós fino branco na mala que passa pela alfândega deve ser um risco no nível do prazer que lhe sucede, não?

Chegada ao quarto aquele janelão que abraçava o jardim. Na porta do lado, o Jeff, colega de turma, nascido em Taiwan, crescido em Belize, estuda em New York. Sorriu e me deu as boas vindas.

Guardei tudo, exausta, e dormi.

Foram 3 semanas intensas. Curso, aula, visita de campo, artigos para ler, bom dia Jeff, tomamos café juntos? Piquenique no jardim, cerveja artesanal no fim do dia, no bar do outro lado do canal. Abraços, gargalhadas, algumas lágrimas. Rússia, China, Taiwan, Singapura, Eslováquia, Alemanha, Filipinas, Portugal, Marrocos, Brasil.

Pão de centeio, lamen, lentilha, falafel, hommus, gouda, masdam, edem, feira orgânica, café.

E aquele dia em que choveu muito. Que era domingo e choveu tanto que não saí do quarto. Que choveu tanto que molhou e choveu por dentro, e o quarto cresceu uns 200 m2 de repente, e eu era pequenina ali, e tudo me parecia tão gigante. Era domingo e eu pensava onde eu estava afinal, para onde estava viajando ainda que tendo o corpo imóvel ali.

Despertencimento, desapego, liberdade absoluta que nos prende e de repente somos por segundos de nenhum lugar. 8 anos em transição, recomeços que se sucedem, como a vida deve ser para quem abre o peito e joga a chave.

16 dias depois, abri o saco transparente. Hidratei a goma. Pedi a frigideira emprestada ao Jeff, fechei a porta, acendi uma vela. recheei com queijo (Gouda), tomate (Italiano) e manjericão (do jardim). Sentei na cama, cantei baixinho, e de olhos fechados, mordi cada pedacinho.

Voltei a casa. E voltar a casa é a melhor sensação do mundo quando entendemos que levamos a casa dentro da gente: mesmo quando não sabemos onde guardamos a chave.

Na aula perguntaram sobre a nossa comida preferida. “Tapioca, é uma espécie de crepe que me leva para casa.“

Comemos o mundo que somos.

Porto, 01 de Agosto de 2017

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