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Foto do escritorMónica Guerra Rocha

Ventre-terra e suas Deusas


“Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem feito. Panela de barro. Taipa de lenha. Cozinha antiga toda pretinha. Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. Cumbuco de coco. Pisando alho-sal.

Cora Coralina – Todas as vidas (1965)

Na última lua cheia, fui em uma benção do útero na Ilha de Paquetá. 23 mulheres reunidas, entre mais de 150.000 que pelo mundo, naquela mesma hora, se reuniam para que a mesma bênção acontecesse. Fui com uma amiga, e outras três, conectadas exatamente na mesma missão, estavam ora sós, ora em outros grupos parecidos com o meu.

Na chegada, três jarras: leite, hibisco, água. Cada uma de nós levava de casa duas taças, uma boneca, um objeto, uma vela, frutas.

Uma das taças receberia a vela, do fogo que gera a vida, na outra um dos três líquidos que escolheríamos: leite para quem ovula, hibisco a quem menstrua, água a todas as demais.

Jorrei o hibisco na minha taça, acendi a vela azul, sentei no canto, segurei a boneca. Deixei manga e tangerina na taça das frutas. Sorri, silenciei, fechei os olhos. A viagem conduzida levou ao fundo da terra, à Lua bolachuda no céu, ao passado longínquo, ao presente de honrar ser útero, alimento, mulher.

BABA YAGA

Dizem que Baba Yaga é uma mulher que voa e que mora numa casa discreta, na floresta. É bruxa, estranha, ambígua, deusa. É mãe e feroz, devora os errantes que passam pela floresta perdidos, ou os que ousam entrar em sua casa, onde a fechadura da porta é feita de dentes vorazes. Ela cuida da floresta e devorando os errantes e invasores, transforma-os em adubo, fertiliza, nutre a terra e faz o ciclo seguir. É mãe e morte, é terra e força, alimento e mulher. Baba Yaga, figura chave da mitologia eslovaca é o útero e o desejo, o sangue e a floresta em uma só figura. É a ancestral mulher que liga na mitologia a energia do todo e a materialidade da vida, que se encerra para renascer, cíclica. Se Baba Yaga pode ser traduzido como dor, Baba será Avó, e Yaga, mulher. A ancestral do feminino não é fragilidade e beleza, mas força e víscera, fecundação da terra, proteção, nascimento.

Não à toa ela devora os perdidos e transforma em alimento que nutre árvores que serão alimento que nutrem toda a floresta que ela mesma representa.

Baba Yaga é cada uma daquelas mulheres naquele encontro, devorando depois suas jarras de leite, de hibisco, de água, dividindo frutas e devorando medos, honrando ancestrais, celebrando o feminino e a fecundação, benzendo seu próprio poder.

Baba Yaga é todos, é todas, é feminino.

O feminino é o lugar da espera nutrida, da proteção que tem dentes nas fechaduras das portas e que devora o errante, que acolhe vida dentro de si, ali do lado do estômago, por baixo do coração. Recebe a semente, fecunda nove meses, gera um ser que será em si mesmo semente. Nutrimos desde o primeiro segundo, somos nutridas infinitamente. Aleitamento, acolhimento, recolhimento, colo. O feminino está no permitir a vida acontecer em nós, como se todos pudéssemos ser terra que permite uma semente virar um broto, virar uma árvore, virar uma fruta, que vira várias sementes. Como se todos pudéssemos ser raízes e asas ao mesmo tempo, pés e luas cheias, unidos.

COMIDA É FEMININO

Quando abraçamos, preparamos nosso café, recebemos, cheiramos a laranja, pegamos manga do pé, plantamos, somos feminino. Quando escolhemos, recebemos, acolhemos, coletamos, cuidamos, cozinhamos, temperamos, transformamos semente em árvore, somos feminino.

É o feminino que leva a oferenda no pé da árvore, que canta o ninar, que carrega no ventre, que devora e devolve para a terra – hibisco, leite, água.

Ao benzer meu próprio útero entendi que nada é mais feminino que o alimento, que não tem metáfora mais perfeita que esse ventre-terra que germina esse ser-semente que se torna essa pessoa-árvore, nesse mundo-floresta e que se protegerá desses medos-errantes, devorando-os e devolvendo-os como oferendas-adubos.

E na próxima lua, no próximo ciclo, no próximo hibisco, no próximo sangue, sejamos sempre mais e mais Babas, mais Yagas, profundamente feminino, profundamente férteis de um mundo que queremos transformar, alimentar, nutrir.

O que oferendamos?

Que sementes fecundamos?

Em feminino, alimentamos o mundo.

Rio de Janeiro, 01/06/2017

(imagem: da autora. direitos reservados)

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