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Todo dia ela faz tudo sempre igual


“Todo dia ela faz tudo sempre igual Me sacode às seis horas da manhã Me sorri um sorriso pontual E me beija com a boca de hortelã” Cotidiano – Chico Buarque

Nas últimas semanas as coisas viraram de ponta cabeça, sabias? A mudança de casa, viagens, resfriado, febre, novos projetos, desilusões, expectativas, revisão de expectativas, sonhos, crianças, gatos, amigos, encontros e desencontros, nascimentos, despedidas, terapia, malas, caronas, piano, violão, chorinho, choros maiores, sorrisos, chá, sopa, pão, abraços.

Dentro da impermanência ficamos buscando eixo no meio do caos e da nova ordem que vem junto. Acorda, bom dia, água e limão, dormiste bem?, lava o rosto, manga e couve? couve não! só por hoje sem couve, com gengibre; então linhaça, tá bom? ok, linhaça, e a tapioca de quê? metade, tou sem fome, QTO, com tofu, com o guacamole que sobrou do jantar, fazes o café?, pode colocar a mesa! que horas é a reunião?

Transições são pontes entre lugares que fomos e onde ainda não estamos. Transições são afinal oportunidades de estar no momento presente, ocupada em lamber as próprias aventuras e desventuras de transcender, seguir e entender que nada nunca fica para sempre. Que nada é para nunca mais.

Moíamos o café todos os dias, escolhíamos o grão. Fazias a tapioca, com a crosta que inventamos, tomate em fatias, temperos que vinham, e eu batia o suco, misturava a couve, o gengibre, a banana madura – ou sem couve, ou sem banana, com maracujá. Os pratos na porta do lado direito do armário, a frigideira pendurada na parede, a faca grudada no imã, a goma de tapioca da dona Sônia que vende na saída do metrô.

Há duas semanas que não como tapioca. Nem vejo a dona Sônia. A Alana, com 5 anos, é quem agora me orienta sobre o lugar dos pratos e onde guardar os copos de vidro.

Quando partiste, eu cozinhei a mandioca e assei o pão de queijo da tua tia. Depois fui eu quem partiu, viajei para São Paulo e no hotel o dia começava com aqueles banquetes com cara europeia. Pães, morangos (e seus mimos:) ), algumas bananas, geleias, nutella, manteiga, suco, café, chá inglês. No segundo dia espreitei o balcão preparado para a comitiva japonesa que tinha chegado no mesmo hotel e decidi misturar a oferta europeizada com o desjejum japonês: Tsukemono (legumes em conserva), okayu (mingau de arroz), tofu e missô. No Rio de volta, estou temporariamente na casa de uns amigos, e tenho começado o dia com o pão artesanal, café, frutas frescas inteiras e geleias que as meninas amam todas as manhãs.

Comentaste comigo que tens estranhado retomar a vida de antes do liquidificador, levei embora comigo: “Vou voltar ao suco de caixinha!”, e que tens comido granola de manhã. E eu ainda não consegui retomar a tapioca ao acordar. Hoje revivi a água com limão, é um começo.

Os rituais de cada dia estão impressos com muita clareza no que chamamos de hábitos alimentares, ou rotinas da comida. Comer tapioca contigo fazia tanto sentido quanto faz dividir a banana com a Alana de manhã, como fazia sentido o pão de domingo que o meu pai comprava para ser esquentado na segunda de manhã.

TODO O DIA ELA FAZ TUDO SEMPRE IGUAL

A rotina e o ritual da refeição é uma combinação ponderada entre demandas e valores. O que tem para comer, o apetite que trazemos, o que esperamos desse encontro, o que queremos oferecer. É a equação entre sobrevivência e convivência, corpo e cultura.

Inventamos horas para comer e comidas para as horas porque precisamos organizar o tempo e assegurar valores e contacto. Comemos para nos relacionarmos, e tornamos ritualísticos esses encontros quando eles passam a estruturar nossos valores e nossos afetos. Entendi que a estrutura do que somos se tece nos encontros e prioridades que desenhamos – almoço às 12h30, janta depois do anoitecer, desjejum ao acordar. São horas marcadas para repetidos pontos de encontro com o tempo e as tradições dos outros, para as trocas coletivamente pré agendadas em grupo. Como se marcássemos horário para fazer parte de uma identidade que trespassa o ingrediente e existe no momento de todos nos conectarmos com um propósito – alimentar, sobreviver. É o que nos resta das reuniões em volta do fogo que permitiram que a evolução humana existisse. Em cada lugar isso pode mudar, e em momentos de transição, ficamos no limbo entre o que era o código anterior e qual será o próximo.

Nas áreas rurais é por vezes comum que a primeira refeição seja a mais abastada, muitas vezes comendo o que restou do jantar do dia anterior. Meu avô sempre queria comer sopa pela manhã, e eu não entendia. Nas cidades do ocidente importamos alguns modelos e padronizamos pre conceitos sobre o que se deve ou não comer ao despertar. É assim em cada momento, em cada ritual. Comemos quase sempre quando é previsto e o que é previsto que se coma.

Alguns suportam a ideia de que já no amamentar esse ritmo deve ser colocado – de 3 em 3 horas.

Cada um tem seu metabolismo, seu apetite, sua própria evolução e desenvolvimento, mas as 3 horas são acima de tudo uma forma de ir introduzindo à rotina e ao ritmo que nossa cultura e nosso sistema organizacional foi desenhando como efetivo: amamentar se torna não mais um escutar e responder a uma demanda específica mas a orientação para um código social materializado em calendário de mamadas.

E ME BEIJA COM A BOCA DE CAFÉ

A identidade e a cultura vão se comunicando através dos comportamentos e da rotina, que é como trazemos o ensinamento para o coletivo e combatemos o individualismo dentro dos grupos que pertencemos. Compartilhar, dividir, colaborar, saborear, comer, são verbos plurais e de expansão em coletivo. Relacionar, abraçar, amar, são as pontes que nos permitem fazer isso.

Não era tapioca, café, ou vitamina. Não é pão, geleia, fruta. Arroz ou missô. Sopa da sobra do meu avô. Não é desjejum, almoço, jantar. É saudade, memória, identidade, amor. Rotina é o ritual de trazer para cada dia os valores que nos desenham. Comendo desenhamos juntos.

Rotinas refletem os pensamentos, comportamentos e gostos que as pessoas internalizam e decretam ao longo do tempo como resultado das estruturas sociais e culturas em que viveram.

(Bourdieu, 1984 ; Warde & Hetherington, 1994 ) Em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2644457/

Rio de Janeiro, 30/04/2017

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