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CARNAR


car·ne (latim caro, carnis, carne, polpa dos frutos, carcaça)

substantivo feminino

  1. Tecido muscular.

  2. Parte vermelha dos músculos.

  3. Animal morto ou porção de animal morto para alimentação.

  4. Polpa (dos frutos).

  5. Natureza animal do gênero humano.

  6. Concupiscência.

  7. Corpo, matéria (em oposição a espírito).

  8. Consanguinidade.

“carne”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/carne [consultado em 31-03-2017].

car·nar (carne + -ar)

verbo transitivo

  1. Unir por parentesco.

  2. Fazer matança de animais para alimentação ou provisão de carne; fazer carnagem.

“carne”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.pt/dlpo/carne [consultado em 31-03-2017].

Então vamos lá. Eu achava que precisava de um pouco mais de prática e destreza nesta coisa de escrever colunas para vir aqui falar sobre um tema tão complexo e delicado, mas esse escândalo da operação Carne Fraca antecipou meus planos iniciais.

Sou vegetariana há 16 anos, e sei que essa frase por si só pode afastar metade dos leitores. Calma, este não é um texto ativista, é um texto informativo e questionador. Ativismo pode ser aquilo que fazemos com a informação e conhecimento que temos. Se depois de ler estas linhas seu consumo de carne reduzir, será como um resultado de reflexão – felizmente, vegetarianismo não é doença que contagie, fique tranquilo.

16 anos depois, não tenho mais uma relação religiosa com o alimento. Pelo contrário, se o fanatismo nos afasta do questionamento, esse é o lugar onde não me interessa ficar. Vamos então tentar esclarecer algumas coisas, quebrar alguns mitos, para que possamos entender que mundo é esse da carne antes da Carne Fraca ter tanta cobertura de mídia por aí.

Vamos fazer uma viagem por algumas perguntas que me venho fazendo e que fazem com que, no meio de tanta coisa que muda na vida, o olhar critico sobre a carne não fez (ainda) com que eu voltasse a me alimentar dela.

A carne?

Começando pelo começo… carne é essencialmente tecido muscular. Pode ser também polpa de fruta (pêssego carnudo é um clássico).

Vamos nos ater ao tecido muscular. De animais. E isso é o primeiro ponto – por que é que um animal vivo é um animal e um animal morto é carne? Em algumas línguas, a palavra muda para o próprio animal: o porco inglês deixa de ser pig e vira um pork. A vaca, deixa de ser cow, e vira beef.

Mas é disso que falamos. Um animal, que viveu, e que foi morto, e que está em forma de um pedaço de proteína no nosso prato, do lado do arroz e do feijão.

De acordo com a legislação, o animal deve ser tornado inconsciente com um tiro no ponto central entre os olhos. O tiro pode perfurar o crânio ou apenas amassar com uma pistola de pressão de ar. Em qualquer um dos casos, deve estar perfeitamente posicionada, caso contrário o animal terá consciência do próximo passo e sentirá toda a dor.

Em seguida, é pendurado pelas patas traseiras e ensanguentado, ou seja, cortada a sua garganta para que o sangue escorra. É aí que efetivamente morre e vira, então, um conjunto de produtos para a indústria, entre eles a carne. Isso é um ponto importante, a indústria toma a vida como mercadoria, e um animal vira cotação de mercado, com partes do corpo mais valiosas que outras. E isso faz com que todo o tempo que está vivo seja uma equação de custo benefício, para que a indústria tire o maior proveito com o menor gasto. E maior proveito significa mais kg de carne por animal.

Um animal para uma comunidade

No vilarejo onde nasceu o meu pai, assim como em vários vilarejos de interior de Portugal, existia a tradição da matança do Porco. Nesse dia todos se reúnem, elegem o animal mais bem alimentado e com maior peso para matar, em ritual, dividir as partes do animal (consome-se tudo), processar algumas partes e celebrar. Um porco alimenta uma comunidade inteira, e o ritual acontece uma vez no ano. Os defumados nasceram dessa tradição, para conservar carne para o resto do ano. Aliás, muito da riqueza gastronômica do mundo vem dessa necessidade de gerir a escassez e fazer o maior e melhor uso de tudo o que se acessa.

Um boi por dia

Nunca se consumiu tanta proteína animal. Só no Brasil, são aproximadamente 213 milhões de cabeças de gado para 206 milhões de pessoas. Exportamos grande parte, mas também há muito consumo interno.

Somos, de acordo com os dados da OCDE, o 5º maior consumidor de carne per capita, do mundo, de carne bovina também – 24,7 kg per capita, por ano. Aves? Aproximadamente 40 kg per capita / ano. Um frango pesa aproximadamente 2 kg. 20 frangos.

206 milhões de vezes.

Para satisfazer essa demanda, é necessário ter mais produção e criação de gado, certo? Gado se alimenta, a princípio, de pasto.

Existem dois modelos mais convencionais de produção de gado atualmente:

Extensivo:

O gado vive ao ar livre com pastagem. Para que isso aconteça, desmata-se o local e fica tudo com aquela cara de manto verde. Para produzir mais gado é necessário ir estendendo as áreas de pasto, o que leva a mais desmatamento de floresta. Isso tem acontecido cada vez mais na Amazônia, basta dar uma pesquisada bem de leve sobre as origens e principais causas de desmatamento e queimada por lá.

Consequências disso? Se começarmos por aí, este artigo vira uma dissertação.

Então qual a outra opção? Alguns produtores vêm se preocupando com a sustentabilidade da produção. Isso em essência significa como desmatar menos, consumir menos área de floresta, menos água, menos recursos naturais para produzir a mesma quantidade de kg de carne que alimente a demanda?

E a resposta vem geralmente em forma de gado confinado. Gado confinado ou semiconfinado é um modelo de produção em que os animais podem ter momentos de pastagem, mas permanecem em espaços confinados e se alimentam muitas vezes de ração feita a base de cereais – já houve episódios de produção de ração com proteína animal mas isso não deu muito certo e é, por norma, proibido (lembram das vacas loucas? É bem por aí…).

Se gado confinado consome menos terra, já a ração que o alimenta, feita à base de soja e milho, tem de ser produzida em algum lugar, certo?! Bingo! A maior parte da produção de grãos transgênicos de soja e milho que tomam parcelas gigantes do território brasileiro são commodities para alimentar… gado!

E como vaca é um animal que tem rúmen e que foi desenhando pela natureza para comer pasto, quando é alimentada a ração a base de cereais e confinada, é muito mais vulnerável a doenças e à contaminação. Aí entram os antibióticos para tentar resolver a história.

Isso, gado que come cereais, possivelmente transgênicos e com uso de (bastante) agrotóxico, e que toma antibiótico em alta dosagem para prevenir e tratar doenças por serem criados numa forma totalmente antinatural. (Imagina agora quando aquela empresa farmacêutica compra aquela outra de produção de grãos transgênicos…).

Algumas produções orgânicas vêm pipocando, mas são ainda atividades com uma expressão residual. No Brasil, o,5%. Em que a ração provém de cereais orgânicos e que se cuida do bem-estar animal – vaquinhas e porquinhos felizes, em resumo bem precário.

Água

Além do uso do solo e do desmatamento vs antibióticos e commodities (que não deixa de ser desmatamento também), carne bovina é provavelmente o maior consumidor de água do planeta. Para 1 kg de bife são usados aproximadamente 15.000 lts de água. 1 hambúrguer? 2500 litros. Isso para toda a irrigação do pasto ou do cereal da ração, mais toda a água que bebe ao longo da vida. Não cabe na conta a água contaminada por uso de agrotóxicos nas produções de cereais para ração, que não é pouca…

Sabia quanta água bebeu o seu jantar?

Clima

Ok, desmatamento, antibióticos e saúde publica, bem-estar animal, água. Mais alguma coisa? Ahã.

Mudança climática. Ouviu falar disso? O planeta está cada vez mais quente e aceleradamente transformando o seu clima. Tem os tais dos Gases de Efeito Estufa que, ao serem lançados na atmosfera, estão fazendo isso acontecer (é o que a ciência vem comprovando, apesar da descrença de alguns super poderosos de plantão desde século 21).

Sabemos do Dióxido de Carbono, o CO2, desde a escola. Mas sabia que um dos gases mais poluentes se chama metano?

E sabe qual é uma das suas principais fontes? Direto ao ponto: flatulência de vaca. Como ruminante, o gado bovino tem muita flatulência decorrente do processo digestivo e libera quantidades bastante consideráveis de metano. Resultado? Agropecuária é, de acordo com o World Watch, a maior e principal responsável pelas emissões de Gases de Efeito Estufa. Com todas as externalidades, pode chegar a 51% de todos os gases emitidos. Isso é mais que a soma de todos os gases de todos os sistemas de transporte do mundo juntos.

Isso, andamos comendo o aquecimento global.

Carne fraca?

Mas afinal como foi essa historia da carne fraca mesmo? Sim, era carne em estado de decomposição mais avançado (é fato que toda a carne é um cadáver em decomposição, podemos apenas estar falando de um processo mais ou menos avançado) que foi mascarada com adição de ácido ascórbico e que todo esse processo incorria em uma trama de corrupção e de mentira para que o consumidor final seguisse comprando tudo o que lhe vendem.

Mas e a história do papelão na carne? Nem vestígios dele. Em todo o processo, não se menciona papelão nenhuma vez.

O processo Carne Fraca é uma excelente oportunidade para fazer questionar até que ponto o máximo lucro é de fato o melhor. De olhar para o sistema como um todo e tentar entender que história é essa que queremos afinal ouvir. Até que ponto vale tudo para vender mais, consumir mais, a um custo que no longo prazo, é alto para todos.

Até onde sabemos o que vem no nosso prato, a origem da nossa comida, os impactos e o caminho que ela fez até chegar ali?

A Carne Fraca é um holofote sobre algumas perguntas. Não é um tema de uma ou outra empresa, não é a falta de fiscalização e a corrupção, é o porquê que permitimos que isso aconteça. É consequência de uma desconexão do nosso canal de ligação com a vida e com o planeta. Comemos o mundo, todos os dias. Um pedacinho dele de cada vez, de formas diferentes, com prioridades que podemos definir.

Podemos questionar o papelão, o ácido ascórbico. Convido a questionar os antibióticos, o desmatamento, a escassez hídrica, a contaminação da água, a erosão do solo, a ética e o bem-estar animal. Podemos até ir mais fundo, perguntar quem está pagando por tudo isso. Qual a justiça socioambiental que queremos, qual o modelo de produção que nos interessa votar, em cada refeição.

Não tem como alimentar todo o mundo dentro do padrão atual. Não cabe no planeta, não sustentamos a vida nesse paradigma e isso está claro. As externalidades são imensas, os impactos incomensuráveis. Para o nosso corpo, as nossas relações sociais e de proximidade, o nosso lugar no mundo. O aumento do consumo origina o aumento da procura que indica ao mercado a demanda e provoca um aumento da oferta. Mas animais, natureza, não dependem só de nós para serem produzidos. Pagamos a conta da abundância com doença, lamentamos o papelão e comemos antibióticos todos os dias. Intoxicados pela indiferença e pelo desconhecimento, seremos sempre alvos da injustiça e da corrupção. De um sistema que nos vê, também a nós, como mercado.

Carne, junto com produtos ultraprocessados de origem transgênica, são das fontes de energia calórica mais caras para o planeta. Precisamos de muita energia total para produzir uma caloria de alimento. E para combater isso, colocamos em risco o nosso próprio lugar no mundo. Esquenta o clima, desmata floresta, ameaça a soberania de comunidades locais, consome a água, contamina os oceanos.

Carnar. Ritualizar.

Ha 16 anos virei vegetariana. Muito tempo depois, virei perguntadora. Entendo o lugar da carne na nossa evolução, em diversas culturas, no lugar de tantas tradições. O respeito e o cuidado com a vida já fizeram da carne um alimento sagrado, ritualístico. Como na aldeia da minha avó, que sacrificavam um porco no inverno e a carne era distribuída pela comunidade. Era um acontecimento, envolvia os mais velhos e os mais novos, mulheres e homens, todos juntos separavam as partes, compartilhavam. Não passava pela cabeça de ninguém matar um porco, um boi por dia. Isso simplesmente não fazia sentido. Ou então desmatar a serra para produzir cereal para produzir ração para alimentar com mais rapidez qualquer animal. Os ciclos são rigorosos, a natureza é perfeita, e eficiência máxima é saber colaborar, dançar com o que temos ao nosso dispor. Não é suposto que vaca seja apenas bife, disposto na gondola, oriundo de um lugar que desconhecemos. Querer alcatra e cupim uma vez por dia, toda a semana.

Faço o desafio que por um dia, que seja um dia apenas, todos possamos voltar a ritualizar e humildemente respeitar esses processos. Que nos possamos Carnar com os ciclos, Reunir por parentesco com esse planeta e esses recursos que são de todos nós. Reconstruir vínculo e agradecimento ao outro, que perde a vida a serviço de nos alimentar.

Que voltemos a agradecer e decidir se queremos mais verdade ou mais quantidade no que escolhemos comer. 3 vezes por dia, podemos agir.

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