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Foto do escritorMónica Guerra Rocha

Da beleza de moer o nosso próprio café


Este texto poderia ser uma carta de amor. Poderia também ser uma despedida, um até mais ver. Poderia ser um memorial ou um poema, mas não. Este texto não é sobre nós mas sobre o que fica além de nós. Sobre como é que de encontros nascem novas formas de reencontro com o mundo, com a simplicidade, e no nosso caso, sempre com ela, a comida.

Pulando a parte de quando nos conhecemos, vamos logo para o segundo dia. Fomos almoçar, e sem muito assunto, ainda de olhos vidrados de encantamento, disseste que precisavas comprar café. Levaste-me para um shopping center (que logo descobriste que era um dos piores lugares para me levar) e fomos naquela franquia americana da logo da sereia, comprar café. Tu dizias com orgulho que compravas sempre o grão, do mais forte e torrado, e que moías todas as manhãs. Que aquele era o melhor café, e a tua fala trazia uma propriedade que me fixava ali, curiosa. Dizemos muitas coisas quando conhecemos alguém, não é mesmo? “Só como sorvete de pistache; Não abro mão de suco de caixinha; Deixo de fumar em qualquer momento; Não durmo em camping; Para toda a vida; Para nunca mais; Queijo só daquela marca; Café só do mais torrado, só da logo da sereia.” Tudo se reavalia depois, porque é da troca e da convivência que nasce a sabedoria. Nascem dificuldades também, mas este texto é sobre café, então voltemos ao tema. Comprado o grão abriste o pacote, cheiramos, puxaste o moedor do armário, moeste o grão, e a cozinha foi invadida por aquele cheiro maravilhoso. Fizeste o café na prensa francesa e eu achei tudo o máximo. Não te contei no dia que era um ritual que eu também já trazia porque queria provar como se fosse tudo novo, sem memória, como se fosse uma primeira vez.

Desde então se deram centenas de rituais semelhantes. Mas tudo sempre especial.

Apaixonados pela tradição que decidimos não abandonar (ao contrário do suco de caixinha, do camping e da marca do queijo) fomos cada vez mais fundo. Conhecemos o Sérgio e o café dele, e entendemos que tem muitos tipos de torra de café. Que na verdade os cafés mais torrados são na maioria das vezes para disfarçar o gosto ruim de um fruto de péssima qualidade que foi colhido quase podre. Aprendemos que o melhor café do mundo produzido no Brasil geralmente não é bebido por cá, e que a borra queimada que vemos por tantos lugares é resultado de um fruto doente, de um processo errado, de uma desvalorização da produção, da falta de cafés especiais acessíveis, de um crime diário com um alimento de ouro.

Percebemos que o café melhor é o mais claro, torra mais leve, e que ele chega a ter aromas cítricos e frutados. Que é suave, e que nele podemos sentir melhor os óleos naturais, deixar o aroma dissolver na boca. Que os amendoados e achocolatados, mais fortes, não chegam a ser aquilo que se bebe por aí, que café queimado não deveria sequer ser vendido, que é uma ameaça inclusive para a saúde de todos nós. Que café não é laxante mas diurético (até isso a gente aprendeu), e que café bom vai nutrir a alma e fazer do acordar um lugar muito mais especial.

Aprendemos a distinguir a cor dos grãos, verificamos se eram de tamanhos aproximados uns dos outros, como acontece muito com as safras especiais. Num dia de inverno, de meia e pijama, fizemos o teste do olfato e ficamos babões quando os dois adivinhamos o tipo de torra pelo cheiro. Sim, temos sempre pelo menos dois tipos de grão diferentes em casa, em duas caixas especiais, e escolhemos cada um de acordo com o humor – torra mais forte ou mais fraca, dias mais frios ou mais quentes, humor mais desperto ou cabisbaixo.

Sabemos até adivinhar o grão que o outro está querendo tomar antes mesmo de perguntar. E isso é totalmente verdadeiro: nunca ninguém diz que não a um café por aqui….

Deixamos de ter açúcar em casa. O leite nunca mais viu a geladeira, o achocolatado passou o prazo de validade no começo do pacote. Mas quilos e quilos de grãos de café especiais foram lambuzados em vários despertares.

Veio a moka para o café italiano, o coador de pano que o teu pai deixou em casa, a prensa francesa ultimamente faz mais chás do que café. Oferecemos moedores a amigos, recomendamos grãos, queremos fazer mini cursos de barista, aprender a tirar um bom expresso, namoramos por meses uma aeropress para fazer o café coado mais forte mas sem tirar os aromas e os óleos.

Quando entendemos que dentro de um grão tem um universo inteiro, entendemos também que cada escolha que fazemos para a casa onde moramos, para as pessoas que queremos e que amamos, são profundas e transformadoras. O café de grão veio junto com a sacola de orgânicos, o liquidificador potente para tirarmos melhor proveito das sementes, dos leites vegetais, das vitaminas de manhã. O suco de caixinha foi trocado por laranjas frescas, espremidas na hora e o camping que nunca iríamos foi destino em vários momentos que quisemos ficar mais perto do mais simples.

Tem muita beleza nisso, comentamos entre nós. Privilegiados que somos, podemos escolher tudo, até o grão em cada manhã. E entendemos que deve ser trabalho e missão de todos incentivar que essas produções, esses hábitos se tornem tão essenciais que virem acessíveis a cada um, e que isso sim, é soberania e escolha de fato.

O café já foi dos produtos mais valiosos do mundo junto com o petróleo. Milhões de sacas foram queimadas na crise de 1929, para que o mercado o mantivesse numa supervalorização. Seguimos queimando nosso café quando queimamos a possibilidade dele ser tudo o que a natureza se dispõe. É um fruto mágico e precioso, que encontrou por aqui um lugar onde se floresceu e transformou todo o país. Tem pouco mais de 2 séculos desde que foi trazido para cá e já tanto aconteceu. Um símbolo nacional, elemento tão forte de uma cultura inteira, o café é muito muito mais do que uma infusão quente de um grão torrado. O resgate desse lugar, o respeito pela sua história, pelo simbolismo que traz (o café era considerado no passado uma bebida maomista, e proibida no mundo cristão pelos seus efeitos estimulantes) são chaves para retomar o respeito pela produção, devolver ao produtor a liberdade e a possibilidade de ter colheitas especiais de produtos de muita qualidade.

A revolução pela comida de verdade começa também por aí. No momento de escolher o seu grão, saber da história do produtor, moer para ter o pó, compartilhar e celebrar, que fazem do café um ritual para além da bebida e isso é profundamente transformador. Todos os dias, pelo menos uma vez por dia, honrar e agradecer a todo o valor que existe dentro de uma xícara é de uma sensibilidade e de uma beleza imensurável.

Ontem fizemos pão pela primeira vez, entre alguns dos nossos últimos cafés. O trigo, o fermento, a água, o sal.

Lembrei do primeiro dia.

E se existiu entre nós amor em dividir as coisas simples, essas são aquelas que ficarão para sempre.

Rio de Janeiro, 12/04/2017

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